quinta-feira, 29 de abril de 2010

Somália - Esboço parte I

Se eu soubesse que um dia ia contar esta história teria guardado todos os diminutivos que usei até hoje na vida.

Preciosos diminutivos. Pingo um pouco, às vezes muito, pra falar do que é delicado, o que é simpático, meigo, pequeno... o que é pobre, ralo e mirrado.

Somália, a bichinha pretinha que morava na última rua antes do rio, trazia desde o ventre da mãe os olhos e a respiração que o faziam ser motivo para carregar todos os diminutivos. Difícil acreditar que todos eles coubessem dentro daquela pessoinha ressecada.

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Perambulava com sua inseparável sacolinha de plástico pra cima e pra baixo. Adorava sair de casa. Se numa manhã tinha que ir à padaria, açougue, farmácia, quitanda e mercadinho, fazia cada coisa de uma vez. Ou seja, ia e voltava pra casa diversas vezes. Gostava da sensação de ter muitas tarefas. Quando cruzava com uma vizinha qualquer durante sua empreitada fazia sempre aquela cara de “Ai, que vida corrida, não?!” ... as vizinhas, como as boas vizinhas devem ser, respondiam com a cara de “Ai, nem me fale!”.

Acordava todos os dias bem cedinho.
Era muito vaidoso, mas como muita coisa não tinha como melhorar, se arrumava bem depressa. Era só bater uma água do rosto. “No máximo um batonzinho de leve. Realça o meu sorriso. Mas não conta pra minha mãe!” Adorava roupas de tamanho menor que o adequado. Mas não adiantava, ficava tudo meio largo. Não havia lycra que fizesse uma peça de roupa colar no corpo.

Morava com a mãe.
Nair.
Diabética que há anos tinha uma ferida incurável no calcanhar e por isso não tinha muitas oportunidades de escapar do cheiro de cozinha que envolvia a casa pequena numa eterna atmosfera de fritura. Quando o sobrinho Luis cismava, passava por lá de carro e a levava à missa. Mas era raro.

O pai de Somália tinha falecido há alguns anos. Seu Jurandir era motorista de caminhão em uma empresa de mineração. Um dia se distraiu ao dar ré à beira do buraco da pedreira. O montinho de terra improvisado, que servia pra barrar as rodas traseiras dos caminhões, com o tempo se assentou. Naquele dia não pode fazer muito. E lá se foi Seu Jurandir pedreira abaixo.

Somália também se chamava Jurandir. Herdara do pai o nome e a simpatia da vizinhança. Os mais velhos ainda o chamavam de “Dirzinho”. “Somália” era coisa recente. Apelido presente dos mais jovens que cresceram com ele e o viram se enrolar numa sexualidade que insistiam em definir como “Meio lá, meio cá.”

Somália sabia que era “Bem pra lá.”

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Passava os dias como se a vida fosse provisória. A vida de verdade ainda não tinha começado.

Não menos que 15, não mais que 30. Quem olhasse não saberia como definir sua idade.

Embora tivesse todos os requisitos para ser roxo defunto. Somália era rosa bebê.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Anonimato

Preocupado com o alinhamento do uniforme.
Preocupado com o cabelo que a mãe penteou antes de saírem de casa. Sentia que no topo do cocuruto o grupo de fios rebeldes começavam eriçar.
Angustiado.
- O prefeito que não acaba logo o discurso!
Dividia ainda a atenção entre manter a bandeira levantada e controlar a vontade de coçar a canela, devia ser culpa das meias novas.
A mãe comprou o tecido, os aviamentos, as meias e o sapato na loja do seu Elias pra pagar no fim do mês, quando recebesse da Dona Marília.

O sol era escaldante. Quase meio dia.
Para a sorte dele, a bandeira fazia sombra.
De canto de olho viu o Josué, que fazia a estréia na banda da cidade, limpar o
suor da testa com a manga da camisa branquinha e ser repreendido com o olhar mortal do Seu Roberto, o maestro que também era o professor de matemática.

A mãe não tirava os olhos dele. E suspirava orgulhosa sempre que a Edi, vizinha serelepe, não estava a cutucando pra falar do fulano que diziam que tinha largado a sicrana, e da indignação com o comprimento da saia da beltrana.
- Onde já se viu?!

Até a Dona Marília tinha mandado parabéns através da mãe.
- Não é qualquer um que é escolhido pra segurar a bandeira.


Um ventinho delicioso bateu.
A bandeira balançou tapando a cara dele. Cheiro de mofo. A ponta com um pedaço de barra desfeita fez cócegas no nariz. Ele fez careta e depois sorriu olhando pra dentro de si. Silêncio.

Silêncio do vento. Silêncio no coreto. Silêncio da Edi.
Silêncio do prefeito. Silêncio do feriado. Silêncio do dia amarelo e quente.


Quarenta anos depois, ainda morando em Inocência, cidade do interior do Mato Grosso do Sul e após ter se casado com uma boliviana chamada Leonor, ele ainda mantinha numa moldura toda rococó a foto que o Ditinho fez e vendeu à mãe.
Mesmo sem os netos perguntarem ele sempre dizia:
- Tá vendo aquele ali na foto segurando a bandeira? Sou eu!

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sabadão

O telefone toca.

- Alô!
- Oi!
- Oi! Pois não!
- Oi.. é que eu peguei seu telefone no disk paquera. Aí... tô ligando...
- Ah! Que legal... Legal.
- Eu acho que.. assim... pelo que eu ouvi tal, né, no... no seu perfil... Eu.. eu acho que a gente tem tudo a ver.
- Sério?
- É. Você gosta de lugares exóticos e tal... e é preto e branco, como eu.
- Puxa, até que enfim! Sabe que eu já tava quase desistindo?
- É. Mas um dia as coisas acontecem.
- Então. A gente poderia se encontrar, né? Beber alguma coisa, bater um papo. Assim, pra gente se conehcer então...
- Perfeito. O que cê vai fazer hoje à noite?
- Tô livre.
- A gente pode se encontrar no Bar do Lagarto lá pelas nove? Cê sabe onde fica o bar do lagarto?
- Sei sim. Pra mim tá ótimo!
- Ótimo então. Como você vai estar vestido?
- De smoking. E você?
- De pijama.
- Péra aí... é... você não é um pinguim?
- Não. Sou uma zebra.
- Ahn... é... então é melhor deixar pra lá.
- Ok... Ok então. Até mais.
- Tchau! Tudo de bom!
- Pra você também!

Uma noite. Uma vida inteira.