segunda-feira, 24 de maio de 2010

Rumba

Ela se foi.
Deixou como lembrança um galo bravo que passeia orgulhoso pelo quintal. Sozinho.

Também deixou uns discos.

*************************************************************

Eu resisti.
Muito.

Comentei com uma amiga:
- Ela é até bonita. Mas não posso levar a sério uma moça que dança rumba.
- Sei como é. Um dia terminei com um namoradinho quando soube que ele tocava cavaquinho.
- Não dá, né?
- É, não dá!

Ela me entendia.
Também estava perdida naquela erudição lamentável que muitas vezes nos impede de sorrir.

Quando fui conversar com minha mãe eu disse:

- Ela dança rumba.
- Sei.

Minha mãe também entendia.

*************************************************************

Até o dia em que a vi dançar, eu estava sempre meio sozinho e irritado. E franzia os olhos para quase tudo o que via.

Até o dia em que a vi dançar.

Mas não se tratava de um fascínio fácil. Não era uma admiração banal.

No início tudo nela me incomodava: As sandálias de salto muito alto, as panturrilhas bem marcadas, as pernas bronzeadas, a saia acima do joelho, o sorriso que se abria demais, o jeito que ela prendia o cabelo, a mania de ignorar o suor. Tudo me lembrava pobreza. E me incomodava.


Com o tempo eu passei a me deixar derreter e comecei a me explicar:


- Sim, ela dança rumba. Mas é uma rumba meio flamenca, sabe?

A lista de poréns foi ficando cada vez menor.

Passei dias avaliando as probabilidades e as impossibilidades.
Pensava nos seus talentos marginais, nas suas habilidades sem valor. No seu esforço inútil em ser reconhecida.

O que ela poderia me oferecer afinal?


*************************************************************

Sei que ela me olhava.
Me olhava e me via.

A surpreendia me encarando enquanto respirava afoita com as mãos apoiadas nos quadris ouvindo as instruções do coreógrafo. E eu sempre fingindo estar concentrado aguardando a minha hora de ensaiar.

Dividíamos, de certa forma, o mesmo palco. Ela passando as tardes enlouquedendo em rodopios que pareciam nunca ter rumo. Eu em meus religiosos compassos e razões acompanhado de um violino ciumento.

Pensei comigo:

"Eu acho que a gente não tem nada a ver. Melhor a gente parar com estes olhares. Esta história não tem futuro."

Ela nem sabia meu nome, garanto. E eu, mesmo apaixonado, me referi a ela com certo desprezo em todas as conversas em que sua figura esteve presente. Um desdém gratuito e covarde.

- Gostosa esta da saia branca. Cê não acha?
- Não acho não. Nada demais.

Houve um dia em que ela ficou na platéia. Coisa rara. Viu todo o ensaio do pessoal da orquestra.

Me atrapalhei todo. Engasguei com a própria saliva. Abandonei o ensaio e depois acabei até vomitando.

*************************************************************

Um dia tivemos uma tarde de folga. Vistoria dos bombeiros no teatro. Fomos todos, elenco e músicos, a uma exposição de filhotes perto dali. Ela fazia caretas lindas para todos os bichinhos.

Na saída podíamos escolher entre um peixinho e um pintinho para levar pra casa. Eu agradeci e disse que não tinha tempo pra cuidar de nenhum dos dois. Ela se encantou com um pintinho. Chegou a escolher entre muitos numa caixa. Desconheço o motivo. Eram todos amarelos.

Equilibrava-o na palma da mão e parecia que era dona do mundo.

- Não é uma gracinha?
- Sim, uma gracinha.

Não pude resistir.

Depois teve um cheese salada, um refrigerante, umas cervejas e minhas noites nunca mais foram as mesmas.

Ela acabou vindo morar comigo. Fomos bastante felizes. Eu, ela e o pintinho - que na breve adolescência, comum dos pintinhos, se tornou um bicho muito feio e desengonçado. Feiura ideal e necessária.

Um dia eu a percebi parada na porta com o olhar triste em direção ao quintal. O pintinho havia se transformado num galo de crista poderosa, peito estufado e cauda impressionante.

Ela estava emocionada. Me olhou meio chorosa e disse que ia dar uma volta.

Eu a segui até o portão e a vi desaparecer virando a esquina. Não olhou para trás.
Dias depois ligou dizendo que queria passar em casa pra pegar umas coisas.

Não ousei perguntar o que tinha acontecido.
Minha mãe disse que tinha previsto.

- Não se pode esperar lógica e consideração deste tipo de pessoa.

Levou quase tudo o que era dela. Deixou o galo e uma infinidade de discos de ritmos latinos.

O galo eu alimento e às vezes até conversamos nos fins de tarde em que estamos dispostos.

Os discos nunca me interessei em ouvir. Nunca gostei de rumba e desse tipo de coisas.

4 comentários:

  1. Ai, que lindo, Lê!

    Bj. Ju.

    ResponderExcluir
  2. Posso brincar também de te dar um tema? rssss.. diz que sim!!!!!!

    ResponderExcluir
  3. Puxa, que bonito.
    De onde você tira tudo isso?

    ResponderExcluir
  4. Este foi doído. Se eu fosse vc eu parava de postar e guardava pra publicar. Já tem um empresário? (risos)

    Abraço!
    Reginaldo.

    ResponderExcluir